Retirado de: Salles Cunha E, História da Odontologia no Brasil, 1963, p. 245-254.
No ano de 1900, último do século XIX, o professor Augusto Coelho e Souza, consagrado dentre os maiores dentistas brasileiros, iniciava-se na literatura odontológica, trazendo à luz o MANUAL ODONTOLÓGICO, com 207 páginas de texto e 75 figuras, ilustrando-as. O fito do autor foi instruir os colegas no que era útil ao exercício da profissão. E conseguiu o fim colimado. Dos seus ensinamentos formou-se toda a atual geração de dentistas brasileiros. O sucessor alcançado pelo empreendimento foi compensador, e até à atualidade edições e edições têm sido tiradas, cada vez mais ampliadas e luxuosas, contanto atualmente a sua obra mais de duas mil páginas de texto. O Manual Odontológico é o mais edificante exemplo do quanto pode a perseverança, o estudo, e o amor a uma profissão. Coelho e Souza é um ídolo da classe, e sua memória se reverencia como de um venerando profissional, digno do respeito e da gratidão dos dentistas brasileiros.
A vida e a obra desse homem multiforme é um monumento erguido ao trabalho, ao amor, ao estudo, à nobilitante profissão que abraçou.
Qual multifacetado brilhante de primeira água, nele não se consegue distinguir qual a face que mais fulgura e irradia, perdendo-se o cronista na contemplação singela de tão puros lavores.
Qual estátua majestosa, não se sabe, que mais admirar, se a perfeição da figura principal, destacando-se na pureza de suas linhas, do pedestal de finos lavores; se os detalhes deste, nos seus altos e baixos relevos de impecável feitura.
Em Augusto Coelho e Souza tudo é de encantar e estontear o biógrafo.
Na sua vida familiar ou pública, nos pormenores mais despiciendos da sua passagem neste mundo, há material copioso para estudo, para observação, para a criação de moldes, dignos de serem imitados.
A maior parte da sua existência está intimamente ligada à evolução da odontologia em nossa terra, fato que lhe deu o mais honroso dos cognomes, – Pai da odontologia brasileira.
A ele se deve em grande parte, a formação intelectual e prática do dentista desta terra, a quem dedicou o melhor dos seus dias, dos seus esforços, da sua dedicação.
Não houve fato relacionado com a profissão que esposara, que não encontrasse nele um advogado ardoroso. Ora pugnando pelos direitos da classe, ora combatendo medidas a ela atentatórias, ora buscando arrancá-la do baixo nível em que a encontrara, ora, enfim, por todos os meios e modos procurando enaltecer a tão espezinhada arte dentária do seu tempo.
Natural do Distrito Federal, tendo nascido no dia 2 de julho de 1863, filho de um comerciante próspero, Augusto Coelho e Souza teve influências discordantes à formação da sua personalidade.
De um lado a disciplinada e disciplinadora cooperação paterna, do comerciante austero e metódico, não tolerando os devaneios de um espírito que se formava. De outro lado, o meio hostil, que fervilhava nos últimos decênios do segundo império, em que vultos rebelados como Benjamim Constant, Lopes Trovão, Silva Jardim, José do Patrocínio, Ruy Barbosa e tantos outros, inflamavam o ambiente, contagiando os caracteres que se modelavam, com um grande amor à nacionalidade. E mais: viajou até ao velho continente, colhendo elementos valiosos para a sua formação.
Coelho e Souza foi tocado por esses fatores antagônicos, possibilitando nascer assim o disciplinador e o rebelado; o artista e o homem de ciência; o intelectual e o prático; o professor e o aluno, sempre no constante movimento de atividades proteiformes.
Ao seu preparo intelectual contou com preceptores do estofo de Abílio Cesar Borges, o barão de Macaúbas, que no seu colégio, à rua das Laranjeiras, soube plasmar aquela personalidade, que então desabrochava.
No Colégio Abílio, é o próprio professor Coelho e Souza quem nos conta, fez os seus primeiros estudos até a idade de 12 anos.
Acompanhou, então, a sua família que fora residir em Lisboa, continuando os seus estudos ali, até aos 19 anos.
Era intenção de seu pai, uma vez que o filho terminasse o curso de preparatórios, endereça-lo a uma faculdade de medicina, a fim de fazê-lo um cultor a ciência-arte de Hippocrate.
Mas os seus naturais pendores impulsionavam-no para o magistério, sonho máximo, razão de ser da sua existência inteira.
Era preciso conseguir o consentimento paterno para encaminhar-se para a profissão que desejava, a de professor. Resolveu, assim, falar ao progenitor, expondo-lhe os seus projetos. Foi, por isso, procura-lo em sua mesa de trabalho. O pai, então, parando os seus assentamentos comerciais, ouviu-o sobrecenho levantado, e respondeu-lhe abruptamente, para encerrar a conversa:
– Não tem futuro!
Para um rapaz de 19 anos de têmpera de Augusto Coelho e Souza, a negação paterna precisava ser vencida. Insistiu nos seus intentos, argumentou-os, discutiu-os, procurando contornar aquela obstinação.
Seu pai, então, para tirar aquele moço da resolução inabalável de ser professor, profissão que ele considerava sem futuro, tomou a resolução de manda-lo para o Brasil, a fim de lutar pela vida, empregando-se no comércio.
O espírito sempre combativo, de uma altivez notável, de um sentimento ampliado de justiça, fez com que, dentro em breve, Augusto Coelho e Souza se visse incompatibilizado com o comércio português do Rio de Janeiro, vendo trancado o acesso, para empregar-se em casas comerciais.
A sua situação era extremamente delicada. Longe da família e precisando conseguir emprego para sustentar-se.
Foi aí que deparou com um anúncio, em jornal do Rio, onde se lia, precisar-se de um professor primário, no Colégio Pujol, em Mendes. Para lá partiu, conseguindo o lugar.
Ingressava, assim, na profissão para a qual nascera, e na qual havia de atingir culminâncias.
Lecionou em outros colégios do interior, sentindo-se perfeitamente integrado nas responsabilidades dignificantes de instruir a infância.
Entrou, mais tarde, para a Escola Normal de Niterói, conseguindo, com o advento da República, em 1889, o seu diploma de professor normalista.
Era o moço dinâmico, que não parava nunca, como jamais parou até nos últimos dia da sua vida.
Um golpe lhe surpreende, então, na terceira década da vida, – a morte de seu progenitor. De herança recebeu algum dinheiro, resolvendo, por isso, tentar fortuna no comércio. Fez-se droguista. Não entendendo convenientemente do negócio, fracassou.
Citando as suas próprias palavras:
“Mais tarde volvi ao comércio, com menos sorte ainda; tive que abandoná-lo em consequência de um desastre financeiro”.
A boa sorte não o bafejara ainda.
Em 1894 vai veranear em Friburgo. Nasceu aí o seu desejo de tornar-se dentista.
Clinicava, por esse tempo, naquela cidade do interior fluminense, com pleno sucesso, um dentista prático chamado Brandão.
A camaradagem, que fez com aquele técnico, vendo-o preparar e polir esmeradamente os seus trabalhos, despertou em Augusto Coelho e Souza, meio desajustado, que ainda se achava, o entusiasmo e a esperança em nova profissão.
Voltou de Friburgo com uma diretriz traçada, – iria ser dentista.
Chegando ao Rio de Janeiro, procurou aprofundar-se na profissão, que imortalizou Pierre Fauchard.
Não obstante estar-se em plena vigência da reforma Alvarenga, o ensino da Odontologia sendo ministrado desde 1884, na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, e pouco mais tarde na da Bahia, era ainda a influência francesa e norte americana, que se fazia sentir nos meios profissionais odontológicos nacionais.
Augusto Coelho e Souza sentiu esse bafejo benéfico no convívio com os livros e dentistas estrangeiros.
Teve como mestre o conceituado clínico, Napoleão Jeóias, figura de relevo entre os dentistas do fim do século passado.
Este, Antônio Joaquim Napoleão Jeóias, foi dentista aprovado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, antes do advento da reforma Saboia, tendo registrado o seu título na Junta de Higiene, em 1877. Fora discípulo do Dr. Coachman, dentista, norte americano do maior renome.
Era, além do mais, um espírito culto e amantíssimo da profissão. Fora sócio fundador do Instituto dos Cirurgiões Dentistas do Rio de Janeiro, em 1889, um dos precursores das nossas associações de classe, sendo redator da revista da agremiação.
Era um profissional probo e meticuloso.
Foi com mestre desse jaez, que Augusto Coelho e Souza desenvolveu o seu estudo de arte dentária, sentindo, assim, indiretamente embora, a influência norte americana, então dominante.
Conhecendo bem o idioma francês, estudou os livros da época, editados naquela língua, de mestres como Paul Dabois, Andrieu, Harris e Austin, e vários outros.
Em menos de um ano se sentira apto a clinicar no interior, indo para Minas, como dentista.
Os profissionais dessa época, na sua grande maioria, limitavam-se a fazer dentaduras, extrações e obturações. Conhecendo e executando Coelho e Souza outros trabalhos, vivia assediado pelos colegas, vendo, então, que os seus horizontes eram mais amplos.
Foi assim que, em fins ainda do século XIX, premido por solicitações de colegas, Coelho e Souza se tornava professor de cirurgia e prótese dentárias.
Ei-lo novamente, no mister que o apaixonava, – o magistério.
E sentindo o grande atraso dos colegas do interior, teve a ideia, em 1900, de publicar um livro sobre odontologia, nascendo assim o Manual Odontológico, com pouco mais de 200 páginas.
Qual peregrino abençoado, começava a difundir o ensino da profissão. Assim, em 1901, instalou em São Paulo um curso de habilitação para os candidatos ao exercício da arte dentária naquele Estado.
Pouco depois seguia para Juiz de Fora, continuando na clínica e no aperfeiçoamento dos conhecimentos dos colegas.
Mas, não obstante, contar já com um respeitável acervo de serviços à profissão, somente em 1904 deliberou regularizar a sua situação, como dentista, matriculando-se no Curso de Odontologia da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, tendo, no ano seguinte, concluído os estudos.
Registrou o diploma na Saúde Pública, em 1910.
Foram seus colegas de Faculdade, moços, mais tarde tornados ilustres, como Frederico Eyer, Agenor Guedes de Melo, Roberto de Souza Lopes e Meton de Alencar.
Mal terminava o curso de odontologia, era convidado para lecionar na Escola de Odontologia do Granbery, em Juiz de Fora, permanecendo no cargo dez anos.
O que foi a sua atuação nesse instituto, atesta-o a formação aprimorada dos profissionais, que com ele estudaram.
Os seus cursos particulares, dados em vários Estados do Brasil, concorreram grandemente para o aprimoramento dos cirurgiões dentistas.
Foi o mestre na acepção lata da palavra, não obstante jamais conseguir uma cátedra oficial, o que constituía o maior anelo de sua vida.
No livro, na Catedra, na Revista, na Associação, onde quer que aparecesse, era a messe ampla de ensinamentos, que límpida e pura, surgia, para o levantamento da profissão, para dessedentar os espíritos ávidos de saber.
Foi Professor da Faculdade de Odontologia e Farmácia da Universidade de Minas Gerais, professor da Escola Nacional de Odontologia, e seu “Professor Emérito”, professor honorário da Escola de Odontologia anexa à Faculdade Fluminense de Medicina, e de várias outras instituições de ensino.
À literatura odontológica a sua contribuição foi inestimável, bastando citar o seu Manual Odontológico, contando atualmente com quatro volumes (Anatomia, Patologia, Coroas e Pontes, e Dentaduras), constituindo a melhor enciclopédia profissional, que possuímos, sendo ainda hoje o livro de cabeceira do cirurgião-dentista nacional.
Alguns dos volumes do Manual Odontológico já deram a nona edição, nesses quase cinquenta anos.
Em todos os setores da odontologia a sua atuação foi brilhante.
Na Revista o encontramos sempre como colaborador ou dirigente. E já em 1913 figurava como redator da Revista Dentária Brasileira, ao lado de Lima Netto, Luiz Carlos de Oliveira e Raul Pereira e Maia.
Nos congressos profissionais, nacionais ou estrangeiros, destacou-se sempre. Representou o Brasil em vários desses certames, na América e na Europa, trazendo sempre importantes relatórios, do que observara.
Títulos inúmeros teve, todos eles de indiscutível justiça: presidente honorário da Associação Brasileira de Odontologia, presidente honorário do Centro Odontológico Mineiro, sócio honorário de inumeráveis associações, sempre sabendo honrar tais dignidades.
Teve a virtude máxima de conservar-se eficiente até aos últimos anos da vida. E é de admirar mesmo, que com mais de 80 anos, ainda revisse os seus livros, acrescentando-lhes temas novos, com a clareza de um espírito moço.
Discutia, além disso, com ardor e convicção, os seus pontos de vista, nas associações, que sempre frequentaram e na imprensa profissional.
Exemplo único de dinamismo ininterrupto, deu ainda prova cabal pouco antes de morrer, já incapacitado de se locomover, por doença grave. Assim, sabendo que nós íamos a Juiz de Fora, cidade onde então residia, fazer uma conferência no Centro Odontológico Mineiro, pediu ao presidente daquela agremiação, que lhe fosse avisado o dia, para que pudesse assisti-la.
Faleceu, finalmente, a 15 de fevereiro de 1949, naquela cidade mineira, sendo sepultado no cemitério local, tendo recebido, então, a maior homenagem post-mortem que jamais teve um dentista brasileiro.
Com os grandes vultos, o professor Augusto Coelho e Souza não morreu ainda, embora tendo desencarnado. Viverá pelas suas obras tempo indeterminado, imprevisível.
A sua atuação, na formação moral, intelectual e material do odontólogo desta terra, há de se projetar pelo tempo adiante, ficando gravada perenemente, nas páginas brancas e imperecíveis da história da profissão.
Com o aparecimento da 1ª edição do Manual Odontológico, encerrou-se o ciclo das publicações odontológicas do século passado.
Afora essas publicações nacionais, estudavam os dentistas patrícios em vários livros estrangeiros, com especialidade os franceses. Dentre estes fez época em nosso meio a “Aide-Memoire du Chirurgien-Dentiste” de Paul Dubois, lida pelos dentistas mais progressistas.
Quanto à revista odontológica nos dois últimos decênios do século transato pouco se pode adiantar. Apenas de uma tivemos notícia, a “União dentária”, vinda à luz em setembro de 1883, na capital da Bahia. Era (como se apresentava), uma “gazeta especial de Cirurgia, prothese dentarias e moléstias da boca”. O corpo redatorial, que se reunia à rua Direita do Palácio, n.4, compunha-se:
Redator principal: Dr. M. Bonifácio Costa. – Redatores auxiliares: Dr. João Loureiro, Cirurgião-dentista J. H. de Cerqueira Lima e o acadêmico Antônio Gomes. – Gerente: o acadêmico J. F. Caldas.
É possível que outros periódicos dentários circulassem em nosso vasto território, mas todos tiveram mais ou menos efêmera existência, perdendo-se os seus poucos exemplares, carcomidos pela traça do tempo.
Com o advento do novo século, um surto de entusiasmo, de produtividade, assinalou-se com as mais diversas publicações odontológicas, quer nos arraiais do livro, quer da revista, quer em todas as outras atividades profissionais.
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